terça-feira, 21 de setembro de 2010

a ti Desejo te


O homem dentro do terno, mata
Há muito, mata.
O seu terno, uma couraça
Em seu peito um cora-cão.

O homem dentro do velho, treme
Há muito teme.
Em seus pelos muitas cãs
Da sua cova, um medo insão.

Se é terno somente a veste
Não o sentir de quem o veste
O manto afasta o abraço fraterno

Se mata, o verbocídio
O ato-fato, a ceifa do nome da seiva
A folha falha, espalha, palha

Se o chão é cova
Um passo em falso
O alçapão

Se a cã se espalha
O branco embaça
A nula ação

Pausa... Preencho, invento, a ti dôo:

Uma manta-térnica
Um arte-fato
Um chão-colchão

Uma florida-mata...

Uns, dois, três, alça-pães
Aos ares, doces e amores!

Mil cãs-can-cans
Pernas e pelos em cores!

Um cão-cantinho-bichinho
Em teu regaço, eu quentinho

Di-Agnóstico II


Atenção: animal não dogmaesticado.

Di-Agnóstico


Todos os caminhos levam adeus.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Schmetterlinge im Bauch




A Poesia 3

Um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente... e não a gente a ele.


Mario Quintana


Presenteado por Laura Geszti

A Poesia 2

Podemos supor que boa parte do trabalho intermediário executado durante a formação de um sonho, que procurar reduzir os pensamentos oníricos dispersos à expressão mais sucinta e unificiada possível, se processa segundo a orientação de encontrar transformações verbais apropriadas para os pensamentos individuais. Qualquer pensamento, cuja forma de expressão parece estar orientada para outros motivos, atuará de maneira determinante e seletiva sobre as possíveis formas de expressão atribuídas aos outros pensamentos, e poderá agir assim, talvez, desde o próprio começo - como é o caso no compor um poema. Se um poema tiver que ser escrito em rimas, o segundo verso de uma copla é limitado por duas condições: deve expressar um significado apropriado, e a expressão desse significado deve rimar com o primeiro verso. Sem dúvida, o melhor poema será aquele em que deixarmos de notar a intenção de encontrar uma rima, e no qual os dois pensamentos tenham, por influência mútua, escolhido desde o início uma expresssão verbal que permita surgir uma rima com apenas um ligeiro ajuste subsequente.


(Interpretação dos sonhos, Vol. V, p. 362, 1900)
Sigmund Freud


Presenteado por Maria Clara Queiroz Corrêa, minha mãe

A Poesia

(...) a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou.


Cartas a um jovem poeta - Rainer Maria Rilke


Presenteado por Laura Geszti

domingo, 5 de setembro de 2010

Negro Cor

Para João Do Corujão
Nosso negro cor
Nosso negro raça
Nosso negro dor
Nosso negro graça

Tu um preto claro
Ele um negro escuro
Eu um preto cinza
Ele um negro azul

Nosso negro mouro
Eu um preto mouro
Vosso negro Otelo
Triste negro Otelo

Nosso negro gato
Nosso negro Gil
De que melodia
O negro surgiu ?

Em que melodia,
Em que dia ou noite foi que se fez o negro?
Em que dia ou que noite, em que data foi
Que perdeu-se o negro,
A partir de quando não fomos mais gente,
E sim vermelhos amarelos e negros e brancos,
Fomos diferentes?

Negro pela rua
Preto em cada esquina
Nosso preto luto
Luta pela vida
   
Negro pelo mundo
Black Power, Zulu
Versos rastafari
Correm pelo mundo

Pele tão morena,
Cor-de-pele negra
Pele da tigreza
Deusa de unhas negras

Nosso negro gato
Nosso negro Gil
De que melodia
O negro surgiu?
   
   
Para ouvir:

Hai-kai-kaidinho-por-você

Ai, ai, ai, I'm waiting
Ai, ai, ai, I'm waiting

Tô desejando uma palavra tua
Tô esperando te encontrar na rua

Tô esperando uma palavra tua
Tô desejando te encontrar na rua

Mal-nu-scrito

Até quando agüentaríamos tal intimidade – suportava ainda a mim, que te adivinhava cada suspiro?

Suportava eu ainda a ti?, tornava-se mais, a cada dia, névoa da manhã fria, reflexo meu embaçado.

Confundiam-se nossas imagens.

Era a hora: a ausência, o afrouxar de mãos, o esquecimento - em algum breve instante no futuro - dos nossos gostos e dos nossos cheiros.

Me deste muito, em especial tua juventude; eu, para ti, arranquei de mim o que de melhor havia. Confesso, dei-me também em contraponto. A contragosto, meus piores matizes.

Perdoa-me, sou destas criaturas de sangue, que um dia morrem, e que por vezes fazem filhos. Pudera conter em mim, mesmo que em pequeníssima parte, divina porção. Limitado sou, porém, por destino trágico, às formas dos seres de carne. Sou filho dos filhos de outros filhos.

Das Mortes

A pior morte sofri intensamente.

Léo morreu aos vinte e três. Canceroso, aos poucos. Doeu-me doído quando soube, já quase no fim, de que ele não mais reconhecia as pessoas. Ali, o perdi. Alguns dias mais, morreu.

As últimas imagens em que o tenho é dele ainda gordo. Ainda sorriso. Mulherengo. Tenso. Amável. Amigo, barbudo e gordo.

Mudaram-se, a família com ele, para Belo Horizonte, em certo momento da doença. Lá, definhou. Cidade de belo nome e de terrível destino para meu querido amigo.

Guardo em meus olhos o Léo carioca, o Léo gordo. Ou em meu coração, o que dá no mesmo.


Senti muitos medos da morte. Certa vez, entretanto, pressenti algo muito mais poderoso, sombrio e paralisante: o medo da vida. Este, às vezes me visita. Há que ser muito vivo demais para combatê-lo, exterminá-lo, matá-lo. Antes.


Meu cachorro tinha o nome da paz: Shalom.

Shalom foi estraçalhado por outro cachorro.

Chorei muito, alguns meses depois, em uma noite de insônia.

Não sinto, não teria como, saudades da sua voz ou de suas palavras. Essas saudades sentimos das gentes (às vezes ouço Léo cantando). O que me faz falta (o que me fez falta naquela noite sem sono) é do Shalom no meu colo, eu afagando o peito dele, o calor, os pelos, a sua pequena língua beijando meu nariz.

Shalom vive na minha pele.


Minha avó se foi após duas semanas na UTI e oitenta e dois anos no mundo. Na ocasião desejei que ela vivesse em algum lugar miserável, longe, desassistido. Teria se livrado dos tubos, dos fios e dos danos da UTI.

Minha avó nunca foi a avó abrigo, abraço de tudo e de todos. Mas foi a que eu tive, a única, e ela me amava, e eu a amei, a mãe da minha mãe.


O pai da minha mãe se foi quando eu ainda não tinha nascido. Não o posso recordar. Era médico, tomou remédios.


O pai do meu pai também era médico, sua esposa, “do lar”. Os dois há muito deixaram de ser. A mim, mal foram. Afastados, em outro país, de onde um dia meu pai fugiu. Os tive apenas através de vozes em telefones, alguns retratos, cartas.

Telefonemas, retratos e cartas. Sem cheiros ou calores.

Creio ter conhecido mais ao Shalom do que estes dois amados avós meus.


Espécie de pré-morte a que meu pai experimentou, em sua juventude. Aos dezenove saiu de sua casa, de seu país, de seu pai, de sua mãe, de sua irmã. Aos pais nunca mais os teve em seus olhos; restou avistá-los com o coração.

O filho afastado de seus pais, para sempre. E sempre é muito.

Pensava diferente do era permitido ser pensado naquela ilha que era o país dele.


Um acontecimento aliviou tantas dores: a irmã de meu pai veio ao nosso encontro, turista de poucos dias, tia que eu sempre quis, meu pai exultante, minha tia risonha, no oculista, eu feliz, mesmo o oculista compartilhava tamanho contentamento...
(no meio de uma noite, adolescente, acordei, chorando, com pena de meu pai. Queria consolá-lo. Fui ao seu quarto. Eu estava triste, ele dormindo. Acordei-o, expliquei a minha revolta, o filho que tomava as dores do pai. Ele me olhou, constrangido, confuso, quase irritado. Acho. O passado é pouca lembrança e muito esquecimento. O que me recordo, de modo difuso, é de minha mãe me acarinhando e me conduzindo de volta à minha cama)
... fomos eu e meu pai ao oculista, levar minha tia para fazer um par de óculos novos, muitos anos depois daquela noite entre parênteses.


Deve-se sempre enxergar muito bem, mesmo que seja apenas por duas semanas.

Minha tia passou a ver melhor lá em seu país, e eu a bebi com os olhos naquelas duas semanas em que aqui esteve.

Na minha família sou o único que nunca usou óculos. Ainda assim, era medroso o meu olhar.

Olhar bem olhado, beber e comer com os olhos. Olhar em outros olhos. Viver com outros olhos.

Após o coração da minha avó parar e seus olhos não mais se abrirem, encontramos, dias depois, em sua casa, embrulhados, um par de óculos novos. Ela os havia encomendado. Não chegou a usá-los.

Nas UTIs não se usam bem os olhares.



Rio de Janeiro, 08/01/98, 01:30 a:m
Rio de Janeiro, 05/09/10, 02:25 a:m
Rio de Janeiro, 31/03/11, 23:23 p:m