A
pior morte sofri intensamente.
Léo
morreu aos vinte e três. Canceroso, aos poucos. Doeu-me doído
quando soube, já quase no fim, de que ele não mais reconhecia as pessoas. Ali, o perdi. Alguns dias mais, morreu.
As
últimas imagens em que o tenho é dele ainda gordo. Ainda sorriso.
Mulherengo. Tenso. Amável. Amigo, barbudo e gordo.
Mudaram-se,
a família com ele, para Belo Horizonte, em certo momento da doença.
Lá, definhou. Cidade de belo nome e de terrível destino para meu
querido amigo.
Guardo
em meus olhos o Léo carioca, o Léo gordo. Ou em meu coração, o
que dá no mesmo.
Senti
muitos medos da morte. Certa vez, entretanto, pressenti algo muito
mais poderoso, sombrio e paralisante: o medo da vida. Este, às vezes
me visita. Há que ser muito vivo demais para combatê-lo,
exterminá-lo, matá-lo. Antes.
Meu
cachorro tinha o nome da paz: Shalom.
Shalom
foi estraçalhado por outro cachorro.
Chorei
muito, alguns meses depois, em uma noite de insônia.
Não
sinto, não teria como, saudades da sua voz ou de suas palavras.
Essas saudades sentimos das gentes (às vezes ouço Léo cantando). O
que me faz falta (o que me fez falta naquela noite sem sono) é do
Shalom no meu colo, eu afagando o peito dele, o calor, os pelos, a
sua pequena língua beijando meu nariz.
Shalom
vive na minha pele.
Minha
avó se foi após duas semanas na UTI e oitenta e dois anos no mundo.
Na ocasião desejei que ela vivesse em algum lugar miserável, longe,
desassistido. Teria se livrado dos tubos, dos fios e dos danos da
UTI.
Minha
avó nunca foi a avó abrigo, abraço de tudo e de todos. Mas foi a
que eu tive, a única, e ela me amava, e eu a amei, a mãe da minha
mãe.
O
pai da minha mãe se foi quando eu ainda não tinha nascido. Não o
posso recordar. Era médico, tomou remédios.
O
pai do meu pai também era médico, sua esposa, “do lar”. Os dois
há muito deixaram de ser. A mim, mal foram. Afastados, em outro
país, de onde um dia meu pai fugiu. Os tive apenas através de vozes
em telefones, alguns retratos, cartas.
Telefonemas,
retratos e cartas. Sem cheiros ou calores.
Creio
ter conhecido mais ao Shalom do que estes dois amados avós meus.
Espécie
de pré-morte a que meu pai experimentou, em sua juventude. Aos
dezenove saiu de sua casa, de seu país, de seu pai, de sua mãe, de
sua irmã. Aos pais nunca mais os teve em seus olhos; restou
avistá-los com o coração.
O
filho afastado de seus pais, para sempre. E sempre é muito.
Pensava
diferente do era permitido ser pensado naquela ilha que era o país
dele.
Um
acontecimento aliviou tantas dores: a irmã de meu pai veio ao nosso
encontro, turista de poucos dias, tia que eu sempre quis, meu pai
exultante, minha tia risonha, no oculista, eu feliz, mesmo o oculista
compartilhava tamanho contentamento...
(no
meio de uma noite, adolescente, acordei, chorando, com pena de meu
pai. Queria consolá-lo. Fui ao seu quarto. Eu estava triste, ele
dormindo. Acordei-o, expliquei a minha revolta, o filho que tomava as
dores do pai. Ele me olhou, constrangido, confuso, quase irritado.
Acho. O passado é pouca lembrança e muito esquecimento. O que me
recordo, de modo difuso, é de minha mãe me acarinhando e me
conduzindo de volta à minha cama)
...
fomos eu e meu pai ao oculista, levar minha tia para fazer um par de
óculos novos, muitos anos depois daquela noite entre parênteses.
Deve-se
sempre enxergar muito bem, mesmo que seja apenas por duas semanas.
Minha
tia passou a ver melhor lá em seu país, e eu a bebi com os olhos
naquelas duas semanas em que aqui esteve.
Na
minha família sou o único que nunca usou óculos. Ainda assim, era
medroso o meu olhar.
Olhar
bem olhado, beber e comer com os olhos. Olhar em outros olhos. Viver
com outros olhos.
Após
o coração da minha avó parar e seus olhos não mais se abrirem,
encontramos, dias depois, em sua casa, embrulhados, um par de óculos
novos. Ela os havia encomendado. Não chegou a usá-los.
Nas
UTIs não se usam bem os olhares.
Rio
de Janeiro, 08/01/98, 01:30 a:m
Rio
de Janeiro, 05/09/10, 02:25 a:m
Rio de Janeiro, 31/03/11, 23:23 p:m
Rio de Janeiro, 31/03/11, 23:23 p:m
Meu amigo! O que é isso? Estou sem palavras para descrever o que sinto depois Das Mortes. Por tudo. Pela história que testemunhei. Pelo outro lado da história que desconhecia. Pelo preciosismo da escrita. Pela construção da sua emoção. Estou envolvida, admirada e muito crente da gente. Continue sendo transmissor disso tudo. Beijo, Deinha
ResponderExcluirMeu irmão, certos textos não devem ser lidos no escritório, cercado de olhares estrangeiros. Fechei a porta porque não deu para fechar as lágrimas.
ResponderExcluirQue texto lindo. Que texto triste.
Onde eu estava? (Onde eu estou?) Não lembro do Leo, já não lembrava do Shalom. Nossos avós estão mortos, sem jamais terem vivido muito em nossas vidas. Nossa tia, sinceramente não sei... Não penso, não lembro. Pra mim, é como morta. Mais fácil do que entreter esta distância louca, irreal.
As dores do papai, prefiro não perguntar. Acho que não ia aguentar a resposta... Só de tentar, o peito dói, bem no meio.
Estas mortes fazem parte da nossa vida de uma forma estranha. São meio intrometidas, não convidadas... Acho que como todas as mortes, em todas as famílias. Mas estas são as nossas. Na verdade (penso revoltado, negado) estas são as suas, pois que eu não teria, sem você, voltado a me encontrar com elas, fugido que eu estou neste meu exílio de 21 anos. 21 anos sem mortes. 21 anos com muito medo da vida.
Obrigado por ter consertado, concertado, algo dentro de mim. Você foi muito generoso. Muito corajoso. Eu, só de ler, ainda estou chorando.
Dani
Uau! Que texto.....Muita emoção contida e saindo como um furacão. Mas me trouxe um querido amigo que se foi pra perto. No breve momento lendo seu texto. Senti e fiquei com saudades do Léo e tb daquele tempo. Acho que nossos olhos eram muito ingenuos ( o meu pelo menos)......e era bom! Obrigada. Beijo grande. Que bom que inventaram o facebook e a internet. Tb sinto falta do Marola. Outro amigo querido que a muito não vejo. Um beijo enorme no teu coração!
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