sábado, 28 de abril de 2012

Script original

e há aquela hora em que
qualquer papel
não mais se lhe ajusta

para a justa medida
não se encontra régua

para as dores de um parto
em que não me acho
nunca se renderá trégua

não mais me reconheço
nisto que por enquanto é o fim
ou em esquecido começo

?o que é meu, ?a quem me entrego
?a que me devo, ?ao que renego

intrincadas questões
respostas fugidias

responderei por mim, então

e com um isqueiro, um maçarico
duas pedras ou um fósforo
lanço chamas

voam aos ares
as letras míudas
de um contrato esmaecido

palavras de ordem flutuam
fumegantes balões desorientados

frases defeitas
desfeitas em cinzas

e resta o nada
e agora posso

conjugar novos verbos

reverberar outros sentidos
com palavras órfãs

recriar o alfa e o resto

e há aquela hora
em que o único papel
em que se lhe ajusta

é o feito das fibras
retiradas da própria pele
com pautas arrancadas dos músculos

e há aquela hora, enfim
em que se nega
a conhecer Eva
a mordiscar a polpa da fruta fácil

e me despeço
livre de meus pecados
do script original

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Triste

hoje estou triste
irremediavelmente triste

amargo
indocilmente amargo

e não há sorriso aberto
palavra de um bom amigo

ou natureza que se desdobre
em luas cheias ou céus de estrelas

que me dissolva essa tristeza

hoje estou descarregado do amor

anseia meu coração,
meu corpo inteiro,
criar couraças

carapaças, catapultas, carrancas
que me arranquem

qualquer espécie de bem-querer
ou de paixão

pois em instante despercebido
nos aprisionam

em redemoinhos de contentamento
em espirais de prazer

para, após, sem prévio aviso
nos arremessar com truculência
na áspera parede da realidade

hoje, todas as mulheres que amei
e todas as que me amaram
se deitam com seus homens

no exato instante
em que invento

esta ode ao desarmor
à desalegria

hoje estou triste
imponderavelmente triste

e a esperança, se há
é quando digo hoje
é quando escrevo estou

o depois, o ser
são os mistérios

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Sextas-feiras tantas

Sempre busquei a salvação em mim.
Nunca acreditei nos milagres dos outros.

Mas às vezes me distraio
e me permito receber as bençãos
de um copo de cerveja
de um corpo de mulher.

Juízo

Todas as perdas
todos os danos
todos os males
todos enganos
me atribuo culpa.

Mas que árbitro é este
que tenho-sou?
Abonando o mundo,
me sentenciando.

Já não paguei as minhas dúvidas,
não quitei as minhas dívidas,
não dividi o meu corpo
em zonas de dores?

Que venha a bonança,
inventadas paixões,
pequenas alegrias.

Minha alma me oferta perdão.

Que o severo juízo
deste juiz ancestral
me conceda benesses.

Um habeas-cor
um habeas-paz
um novo amor.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Tarja Preta

O espanto de orelha a orelha.
Medicamento controlado.
O pranto:
de centelha à queda-d'água,
de pavio a afogamento,
um segundo.
Vendido com retenção da receita.
Os olhos espessos
medem os medos do mundo.
Os poros exalam ódio,
os dedos se curvam inglórios.
Persistindo os sintomas, procure um médico.
Bastaria a glória
de estar cem por certo vivo.
Esta substância pode causar dependência.
  

Sexo

Um velho moço,
de certa idade avançada,
avançando seus olhos às moças,
bundas, pernas e coxas,
de vez em quando, se indaga:
meu deus, para que tanta carne?”.

Não tem pudores em excesso,
lascividades, tampouco.

Mas eis que este moço velho,
de incerta idade indevida,
enfim descobre:

o sexo não é mero anexo
de um corpo incompreendido,
ainda na lida, ainda com vida.